“Lavar as mãos com água e sabão”. Com certeza você ouviu essa frase como uma das medidas mais importantes no combate à Covid-19. Isso pode ser simples, claro, mas para quem tem água disponível. Uma realidade que não é a de todos nós, infelizmente. De acordo com dados do IBGE, 16% da população brasileira, 31 milhões de pessoas, não têm acesso à água fornecida por meio da rede de abastecimento. Ou seja, para elas, não existe abrir a torneira e lavar as mãos com água limpa.
Quando o problema não está no tratamento e no fornecimento, está na produção de água e qualidade da água dos rios. A cada ano, o Brasil tem sofrido cada vez mais com a escassez de água, de suas nascentes aos reservatórios. Mudanças do clima e desmatamento de áreas florestais, em ritmo crescente no País, são as principais razões. Seja na Amazônia, com nossos “rios voadores” – termo criado pelo pesquisador Antônio Nobre para demonstrar como a floresta amazônica ajuda a levar chuva para várias partes do Brasil e regular o clima – seja no Cerrado ou na Mata Atlântica, com suas nascentes que, de um fiozinho d’água, dão origem a rios que matam a sede na floresta e nas cidades.
Como educadora ambiental, atuando em cidades do Sistema Cantareira de abastecimento, a água é o tema que permeia todas as minhas conversas junto com os mais diferentes públicos com os quais eu tenho contato. De professores a produtores rurais, todos já enxergam como o recurso tem se tornado precioso em nossas vidas. Mas no decorrer de mais de 10 anos atuando com o tema, já é possível perceber que as medidas de uso consciente que aprendemos e ensinamos não são mais suficientes para garantir o “uso sustentável” desse recurso. Se antes pensávamos em proteger florestas para as futuras gerações, isso não vale mais. Precisamos proteger e semear novas florestas não apenas para as gerações futuras, como costuma-se dizer, mas para a nossa geração.
Vivemos um momento em que é preciso (re)pensar de forma sistêmica sobre a água. Afinal, sem ela não há vida e os nossos hábitos e meios de produção têm impactos gigantescos no ambiente onde a água é produzida. Para além de cobrarmos políticas públicas eficazes e ações que consigam levar água a todos os brasileiros, bem como ficar atentos sempre à responsabilidade das empresas detentoras do direito de uso desse recurso, precisamos repensar a água também lá onde ela tem origem, na floresta.
A água não nasce na torneira. Para chegar até as cidades, a água faz um longo percurso, desde as nascentes dos rios, nas florestas, onde as árvores têm papel fundamental no seu ciclo. A água da chuva bate primeiro nas folhas das árvores chegando ao chão com menos força, evitando o desprendimento de partículas do solo. A camada de folhas e galhos que cobre o chão dentro das matas age como se fosse uma esponja que retém a chuva, permitindo que ela infiltre aos poucos, guiada pelas raízes das árvores, até alcançar o lençol freático.
Ainda há quem acredite ser necessário derrubar florestas para produzir alimentos e criar rebanhos, mas basta observar a natureza para encontrar soluções inteligentes que sejam ambientalmente corretas, socialmente justas e economicamente viáveis.
Os sistemas agroflorestais são exemplos de que é possível produzir alimentos em meio às árvores, gerando um equilíbrio do ecossistema muito parecido com o que existe nas florestas nativas. Bom para a conservação e fertilidade do solo, a recarga do lençol freático, a diversidade de espécies, a segurança alimentar do agricultor entre outras vantagens. Para os rebanhos existem alternativas como as pastagens ecológicas, que também tem árvores e o pasto é dividido em parcelas. Nesse sistema, os animais se alimentam apenas um dia em cada parcela, enquanto isso, nas outras, o capim cresce, o solo não fica exposto, os carrapatos morrem porque não encontram um hospedeiro e a chuva encontra as condições necessárias para infiltrar em vez de levar o solo embora com a enxurrada, provocando erosão. As árvores proporcionam conforto térmico para os animais e também contribuem para a oferta de nutrientes para eles e para o solo.
Mas a responsabilidade pela produção rural sustentável não está só nas mãos dos produtores e dos técnicos extensionistas. Quem vive nos centros urbanos também precisa contribuir para o uso sustentável e não apenas consciente da água. O acesso à água em quantidade e qualidade está relacionado aos nossos hábitos de consumo e às nossas escolhas no cotidiano e isso não tem a ver só com economia de água.
Ao comprar alimentos da produção local ou bem próxima de onde se vive, estamos contribuindo para fortalecer o trabalho do produtor rural que protege o solo, a água e a biodiversidade, proporcionando qualidade de vida para a família dele e para a nossa. Isso sem falar das toneladas de gases de efeito estufa que deixarão de ser lançadas na atmosfera, porque esse alimento não precisou viajar muitos quilômetros para chegar até a à mesa.
Importar-se com questões como água, alimentos e mudanças climáticas é fundamental para a necessária transição para sociedades mais justas e sustentáveis. Esses temas precisam estar nas escolas, nas universidades, nas igrejas, no comércio, na indústria, em todos os lugares, e não apenas nas datas comemorativas. Precisamos explicar às crianças (e aos adultos) de onde vem a água, o que é polinização, o papel das florestas na nossa saúde – e a pandemia é um ótimo ponto de partida – e no nosso bem-estar.
Esse é o nosso segundo Dia Mundial da Água celebrado enquanto atravessamos (ainda e infelizmente) a pandemia de Covid-19. Se eu pudesse desejar algo para esse dia, como educadora, é que cada um de nós, ao abrir a torneira e lavar as mãos com água e sabão evitando esta e tantas outras doenças, pudéssemos nos lembrar como somos privilegiados em poder acessar esse recurso.
Andrea Pupo, coordenadora de Educação Ambiental do Projeto Semeando Água, uma iniciativa do IPÊ – Instituto de Pesquisas Ecológicas, que busca contribuir com o aumento da segurança hídrica do Sistema Cantareira.